domingo

Por enquanto...é mais um domingo

Mudaram as estações / Nada mudou / Mas eu sei que alguma coisa aconteceu / Tá tudo assim tão diferente / Se lembra quando a gente chegou um dia a acreditar / Que tudo era pra sempre, sem saber, que o pra sempre / Sempre acaba...
Por Enquanto, Renato Russo


A música veio, assim, sem pedir licença. Não está no meu MP3, nem no meu top cinco, nem no top dez, e muito menos eu a ouvi recentemente.

Veio assim, naturalmente, como uma mensagem qualquer, como uma resposta para as dúvidas, como um conforto a uma simples pergunta.

"Alguma coisa mudou de lá pra cá?".

Não sei. Mas lembro que os primeiros raios de sol daquela manhã de domingo banhavam os velhos prédios da Lapa enquanto o ônibus seguia, em alta velocidade, rumo à Praia do Flamengo. E enquanto as lágrimas teimavam em rolar pelo meu rosto.

Mas que droga, pensava eu. É ridículo. Não deveria deixar ninguém ver. Um homem desse tamanho chorando às seis da manhã de um domingo, depois de uma noite inteira se distraindo, rindo, bebendo, ouvindo histórias, falando bobagens.

Não há nada que justifique isso. Nada mesmo. Esse choro parece de outra pessoa, de outro ser, não parece meu. Não sou assim. Ou será que eu sou? Ou será que há algo que justifica tudo isso e não quero admitir?

Mas, quem disse que adiantava? O sol continuava subindo, o ônibus continuava seguindo, e eu continuava mal. Às vezes triste, às vezes chorando. Às vezes tentando lembrar...do que mesmo?

"Se a coisa ficar preta, faz uma piada que melhora."

Quem foi o idiota que inventou isso? Como se fosse simples assim, a gente faz uma piada, ri e daqui a pouco essa tristeza passa. Bem, na verdade é meio assim. Mas é difícil quando a gente teima em guardar as coisas para si, também. Não dá pra rir com tudo isso guardado. Melhor botar tudo para fora.

No bom sentido, é claro. Mas seria o ônibus na Lapa às seis da manhã de domingo o melhor lugar pra isso? Estaria o álcool me afetando de alguma forma? Ou...alguém estaria me afetando de alguma forma?

A memória dá saltos, pulos. Me lembro de gente se despedindo de mim em Copacabana, como se o ônibus não tivesse passado pelo Rio-Sul, por Botafogo. Tomara que eles não tenham reparado em nada, eu não teria cara para encará-los de novo. Ou não.

Me lembro do Corte do Cantagalo, e do sol já alto. Sempre adorei voltar para casa esse horário, hoje parece chato. Talvez porque falte alguém pra conversar. Ou talvez porque tenha gente demais no ônibus e eu não possa falar alto e dizer tudo o que penso, sob pena de ser tachado de louco.

Não que seja normal, mas louco também já é demais.

Me lembro da chegada ao Leblon, tão bonito sob o sol das seis da manhã, com seus pássaros cantando, suas ruas simpáticas, gente saindo para fazer exercício. Pô...tem que gostar muito pra fazer exercício essa hora. Ou então ir direto da noite. Tem maluco pra tudo.

Não, não fui fazer exercício, fui para casa. No caminho, xingava, chutava pedras, reclamava. E o Leblon tão bonito. E um dia lindo que nascia. E eu dizendo que passaria o dia emburrado. Como se estivesse de luto por alguma coisa. E cadê o espírito pra fazer uma piada pra melhorar o astral?

Tem a piada do disque-luto (liga pra lá e ouve um minuto de silêncio), mas era tão ruim que não consegui contar pra mim mesmo. E ela é tão ridícula e tosca que é engraçada, mas nem assim consegui rir.

E cheguei em casa dizendo que não tinha sido uma noite boa. Por que mesmo, hein? Nem lembro mais. A memória pula de novo, lembro que fiz um belo sanduíche e comi. Passava Chaves na TV, fiz questão de assistir. E no próximo "salto" já ouço a voz de alguém me acordando.

E um banho pra recobrar as forças, colocar as ideias em ordem, me refazer.

Foi quando a música veio, assim, de memória, sem pedir licença. Não está no meu MP3, nem no meu top cinco, nem no top dez, e muito menos eu a ouvi recentemente.

Veio assim, naturalmente, como uma mensagem qualquer, como uma resposta para as dúvidas, como um conforto a uma simples pergunta.

"Alguma coisa mudou de lá para cá?"

sexta-feira

Tão fácil mudar a cor do fundo

Engraçado que eu tenho escolhido lugares com pouca luz. Bancas de jornal já incomodam longos dias. Uma fotofobia acompanhada de uma certo pavor. Redundante construção. Não sei se escondo eu se escondo dentro. O fundo da tela ganha cores pro cinza. Brilha muito esse papel.


Tanto tempo que eu não escrevo por ir. Não escrevo. Não há o que de bom. Joguei umas cartas fora. Lembrei. Achei uma paleta do tempo do violão. Um porta retrato. Vazio.


Ela já não tem mais o meu retrato no seu porta retratos que nem é de vidro.


Engraçado que eu achei essa frase num texto velho e capenga. Na verdade eu não importo. Em duas formas. Eu não importo. É uma febre que queima. A garganta pede uma dose quente. De chá. Nunca tinha inventado palavras nesse estado. Febril. Poucos dias experimentei a escrita alcoolizada. Deu certo não. Dá certo nunca. E com febre tendo ir a caminhos de tristeza muito estranhos. Ela não ligou pra saber da novidade. O quarto ainda é pequeno. Organizei meus livros. Nunca faço isso. Quer dizer simbolicamente que eu os abandonei em organizada estante. E não leio e não como as palavras. Mas eu vou desequilibrar o primeiro. A febre vai passar. Eu vou ler algo. Em alto tom desconfiado. Vou andar novamente na bicicleta e temperar aquele peixe que eu comprei. Para jantar acompanhado. Agora jantar sozinho.


Eu vou comprar algumas revistas. Eu vou tocar alguma besteira. Achei a paleta de som. Eu vou cantar umas besteiras. Ela vai ligar novamente. Joguei umas coisas fora. Fora da retina. Eu tenho procurado lugares com pouca luz. Fotofobia

quarta-feira

Sintaxe de regência.

Ela estava linda. Não sei se era noite. Repetido não era. Não havia estrelas para questões de lembrança de romantismo época. Era linda e não havia estrelas. Era mais ou menos tudo laranja e, como numa cidade grande - qualquer - as estrelas se vão.
Mas então por que razão eu escreveria coisa parecida?

É, pois, a, razão, era que, passou, um, barco. No meio da rua passou um barco. Era estranho pois não tinha mar. E nem ilha desconhecida para chegar. Não tinha mar e passou um barco. Na rua. Laranja. Estrelas? Era linda. Nada demasiado. Era noite e o calor já pensava em habitar nossas vidas. Vamos?

A tampinha do refrigerante que a gente não abriu: qual o time ganhou o campeonato brasileiro de 1997? O Vasco. Eu sabia. A resposta já estava lá. Era engraçado pois eu lembrava do tempo que amava. Do tempo que futebol. Importante. Eu lembrava de coisas. Eu simplesmente lembrava. Esquecia. Lembrava.

Me responde por favor minha: onde eu coloco essa vírgula? É. Pois. bêbado você sabe essas coisas de vírgula somem. Atropelam.

O barco passa pra lá. Eu passo pra cá. Ilhas não há. Pra cá. Mas o barco sabe sempre o caminho. E algum dia ele habitou estaleiro longe da lagoa. Ele precisa de rua. Ele precisa de laranja. De postes de mercúrio. E quase por isso eu estranhava a noite. Algo de estranho andava. Por aí.

estaleiro

s. m.
1. Lugar onde se constroem ou reparam navios.
2. Armação sobre que assenta a pedra que o escultor utiliza para as suas obras.
3. Átrio, terreiro, rossio.
4. Bras. Leito de paus sobre forquilhas em que se põe a secar milho, carne, etc.

Algo acontece.

Perdidos e achados

Cheguei em casa, entrei no quarto, e quando me dei conta...ela não estava lá.

Por um instante achei que tivesse me enganado. Onde será que poderia estar? Comecei a procurá-la pela casa inteira.

Mas...que nada. Nem sinal. Nem sombra. E nenhuma resposta aos meus apelos.

Então, talvez...bem...estivesse na padaria. É...às vezes ela ficava por lá naquele horário, esquecida ali pelo balcão. Não custava nada ir verificar. Então, coloquei os sapatos, desci as escadas e fui atrás dela.

Pela rua, a angústia era enorme. Como isso podia ter acontecido? Não era possível que eu a tivesse perdido assim, num mísero instante. Não era possível que tivesse sumido sem mais nem menos, sem motivo, sem razão. E ela era tão importante para mim...e sabia bem disso.

Cheguei na padaria, e em vez de perguntar por ela, saí procurando. Passei o olhar por todos os cantos, todos os lugares, da porta à entrada da cozinha, e nada. Do balcão à caixa, nada ficou por ser verificado. Perguntei por ela.

Nada.

Voltei para casa desanimado, desolado, as mãos nos bolsos. Subi...e tive um estalo. Fui verificar o armário.

Vazio. Lá dentro não havia nada. Absolutamente nada. Fiquei desolado.

E num instante, percebi tudo. Era tudo tão claro para mim. Tão óbvio. Já sabia onde ela estava, e tinha de ir atrás dela o mais rápido possível.

Voltando à sala, mexi nas malas que havia comprado e arrumado naquele dia mesmo. Que cabeça a minha...esquecer uma coisa como aquela. É claro que ela só podia estar lá.

Em uma das malas, puxei uma etiqueta e verifiquei que havia um telefone. Peguei o celular e disquei.

Contei a história a quem atendeu do outro lado. Perguntei por ela. Tinha que estar lá.

Nada.

A busca foi em vão.

Nunca soube onde diabos perdi a droga da minha carteira.

segunda-feira

Reflexos

Os óculos escuros do pai fascinavam o menino.

Estavam sempre lá, pendurados no peito, presos à gola da camisa dele; balançavam quando se abraçavam, e se moviam sempre para lá e para cá. O movimento era muito rápido, suave...quase hipnótico.

Na primeira oportunidade, o menino pegava-os entre seus dedos e examinava-os. Quem sabe, buscando alguma resposta para aquele fascínio por trás das lentes escuras, das hastes pretas, daquela estranha marca vermelha e branca que ficava nas laterais.

Procurava entendê-los, quem sabe; virava-os do avesso, de cabeça para baixo, o colocava no braço do sofá, em cima da mesa, na beira do vaso de plantas. Depois, em si próprio e no próprio pai. E tirava de novo, e examinava, e buscava entender algo tão simples. Olhava bem para ele...

E se via refletido nele...naquelas lentes cinza-escuras.

O pai achava graça, ria, procurava mostrar o óculos. "Tá com o óculos do pai?"

A pergunta soa óbvia, mas parecia cheia de orgulho para o menino. E ele punha em si mesmo, e tirava de novo, e colocava na própria gola de sua pequena camiseta, e por fim o largava em um canto qualquer da casa, distraído com outros brinquedos e outros pensamentos.

Até o momento em que o pai pegava-os de volta, colocava em si mesmo - ou na gola da camisa, ou no alto da cabeça - e ia embora...

***

O tempo passou. O menino virou homem, cresceu. E sem se dar conta, comprou seu próprio óculos escuro - seja no singular ou no plural, o que ele menos queria saber era do português. Queria seu próprio óculos.

Mas já não havia o mesmo fascínio, o mesmo olhar de antes, a mesma empolgação. A mesma curiosidade, o mesmo exame, tentando entender algo tão simples. Comprara o óculos para...para...para que, mesmo? Nem ele próprio sabia direito.

E o óculos ficou lá, jogado em um canto da casa, guardado no estojo. Como mais da metade das coisas em seu quarto. Como mais da metade das coisas em sua vida.

Até o dia em que o sol o chamou, e o "menino" se lembrou de seu "velho" óculos. Respirou. Tinha um. Seria útil agora.

Abriu o estojo, colocou no rosto, se olhou no espelho. Perfeito. E lá foi ele atrás do sol.

Foi e voltou. Mas o dever o chamava, e lá foi ele de novo. Desta vez, se lembrou do "velho", e foi com ele. No caminho, tirou o óculos para enxugar o suor do rosto...e olhou bem para ele...

E se viu refletido naquelas lentes cinza-escuras.

"Tá com o óculos do pai?", perguntou uma voz em sua cabeça.

"Não, esse aqui é meu", respondeu ele para si mesmo. "Eu agora tenho o meu próprio."

E depois de examinar o óculos atentamente, virá-lo de cabeça para baixo, olhar a marca e o reflexo, enxugou o suor do rosto, botou o óculos de novo, e seguiu seu caminho.

quinta-feira

Conversa de bêbados.

Me dá um cigarro?

O pronome anda errado. Mas tome aqui o seu cigarro.

Abriu o pacote de Derby amarelo, como se diz no interior, novo que nem era triste como a noite caminhava.

Ele o abraçou como se fosse o seu salvador. Daquela noite que nem era madrugada. Ele o salvou.

Obrigado. Obrigado.

Repetia infinitamente o agradecido.

Eu trabalho no posto. Quando o senhor precisar de trocar uma pastilha de freios eu troco. O senhor compre as pastilhas. Mas eu não cobro nada pra trocar. Faço isso pro senhor que é meu parceiro.

Bom dia! O que mesmo o jovem faz?

Perguntava tranquilamente o médico das automobilidades. Ele iria examinar para saber se tenho as condições de dirigir. A carta de motorista andava vencida. Pelo uso. Pelo tempo que passa.

Faço cinema.

Nossa! Cinema? Mas é difícil isso por aqui nessa cidade tão pequena.

É.

Examinou. Sentenciou.

O senhor enxerga pouco nessa do lado direito.

É. Só enxergo bem com a esquerda. Marxismo puro.

É. O senhor enxerga de vultos. Mas... o senhor não precisa de dificuldades. Está aprovado. Vá em frente. Cinema?

Cinema!

domingo

Conto de domingo.

Domingo. Apartamento. Preguiça. Sol. Sol. Preguiça. Ensolarado. Domingo. Bike. Metrô. Bike. Cantagalo. Sol. Abacaxi. Suco. Bike. Sol. Ipanema. Leblon. Linda. Lindas. Coleção. Linda. Sol. Mar. Leblon. Morro. Irmãos. Tio. Tia. Sol. Ipanema. Posto. Nove. Arpoador. Arpoar. Seduzir. Sol. Curva. Copacabana. Copacabana. Palace. Bike. Água. Bike. Curva. Botafogo. Cristo. Cristo. Cristo! Enseada. Vírgula. Sinal. Ponto. Vírgula. Linda. Morena. Olhou. Linda. Curva. Monumento. Curva. Pão. Açúcar. Pão. Açúcar. Barco. Leve. Vento. Barco. Regata. Praia. Bosque. Burle. Marx. Falei. Sozinho. Falta. Marx. Parque. Domingo. Família. Tio. Tia. Bike. Água. Coqueiro. Aterro. Desaterro. Mar. Inunda. Vento. Leve. Vento. Mundo. Novo. Hotel. Glória. Marina. Cristo. Barco. Ir. Ilha. Desconhecida. Marina. Glória. Pracinhas. Monumento. Bike. MAM. Arte. Interrogação. Virgula. Dois. Pontos. Pausa. Barco. Pausa. Desenfado. Alonga. Água. Leve. Brisa. Caminhada. Cinema. Cinelândia. Odeon. Pausa. Passado. Caminho. Teatro. Municipal. Theatro. Pausa. Bike. Metrô. Bike. Domingo. Apartamento. Banho. Domingo. Pausa. Desenfado.

Pequenas histórias e outros objetos pontiagudos.

O negócio é que o calor estava no limite do impossível para uma sobrevida – mínima. Deveria desistir das atropelações do futuro e entregar meu corpo numa decadência da alma. Desagregado eu sobreviveria. Longe do front e no maior deserto de mim.

Decidi botar pra foder com o resto de oxigênio restante. Eu não sei se era mesmo aquele sonho de infância – bizarro – onde nada nesse deserto de hoje sobraria. As camas caiam na vertical – alucinadas. Para um infinito inferno sob o chão da sala de estar – mínima. Do corredor mínimo.

Decidi botar pra foder. Vamos ouvir alguma psicodelia alternativa. Quero ver ondas sonoras.

Ela acordou suada de amor. Linda. Levantou nas maiores das decisões. Decidida. Catou minhas canetas que eu espalho pela casa. Meus blocos de papel com pequenos fragmentos. Pequenas histórias. Eram muitos. Catou todos.

- Eu preciso escrever!
- E... eu... preciso te esquecer.

A nicotina que já não habita mais por aqui fez-se necessária. Mas era longe e o ônibus ia demorar até o dia vir. Era frio. Era frio como no começo. Era laranja. Era madrugada.

BAIXA - Ou a história da morena logo ali.

Explicação necessária:

Decido publicar esse texto pois senti saudade.

Era algo assim que pensei pra começar o texto. Rasgo a primeira folha do bloco que comprei. Brega. Começo novamente o texto:

Decido publicar esse texto pois o considero sensacional do ponto de vista da minha literatura.

Volto de novo ao bloco. Idiota.

Alguns bons meses me separam desse texto. Andava com um bloquinho pelas escadas rolantes da estação de metro mais interessante de Lisboa. Interessante pela boemia. Pelos olhares. Cerveja barata. Tudo isso muito perto. Bastava subir as escadas. Uma caminhada de poucos minutos. Andando sem pressa. Pressa fica sempre em casa. Queria que essa coisa se transformasse em um filme.

Quem sabe um dia.

Gosto das locações que criam as situações. O texto surge pois existe algo neste lugar. É preciso estar atento.

Dois amigos se encontram em Lisboa. Conversam ao longo da caminhada que vai os levar à praça Camões, ao pé do Bairro Alto. Ao pé de seus desejos de noite que começa. Eles conversam e caminham. E é tudo.

Senti saudade.
Gosto do texto.

BAIXA

PERSONAGENS

MARCELO

THIAGO

Plataforma do Metro Lisboa, estação Baixa-Chiado.

Marcelo - vinte e poucos anos, calça jeans e camiseta colorida, usa um All Star e está com uma mochila pequena.

Marcelo sai do Metro e começa a subir as escadas para chegar à plataforma superior da Estação. Encontra Thiago que está esperando na parte superior da plataforma.

Thiago - Vinte e poucos anos, calça jeans e camiseta de botão, usa um tênis adidas surrado.


MARCELO

Estou atrasado como sempre.
THIAGO

Relaxa que isso é normal com você.

Os dois começam a andar na plataforma em direção às roletas.

MARCELO

Mas você sabe que não costumo me atrasar para essas coisas de trabalho. Pensando bem, hoje, eu vou faltar essa coisa. Vamos sair e fumar um cigarro e a gente pensa o que faz.

THIAGO

Você perdeu a cabeça novamente, continua fumando e ainda vai faltar o trabalho.

MARCELO

Vai me regular como sempre? É o seguinte vamos fumar um cigarro e pronto. Preciso conversar, estou muito tenso com esse trabalho. Parece que estou fazendo um intensivo existencial nesse lugar.

THIAGO

Realmente o lugar onde você trabalha é bizarro.

MARCELO

Mas vamos falar de outra coisa... faz tanto tempo que a gente não se vê, que não faz sentido falar disso agora.

THIAGO

É.

THIAGO

E os roteiros continua escrevendo?

MARCELO

Continuo... mas não te envio por conta desse tal existencialismo. Mas deixa pra lá!

Thiago balança a cabeça em sinal de reprovação e sorri.

MARCELO

No mais eu nunca posso escrever um roteiro de cinema. Nunca posso usar armas, bombas e perseguições de carros. Fica sempre nessa mesma de dois amigos que se encontram em algum lugar e no final algo bizarro acontece, mas rola uma suspensão na narrativa que deixa a coisa meio com dois sentidos e na verdade eu tou é fazendo as coisas dentro dos meus limites de produção: Cineasta em formação, duro e sem saco pra produzir uma complexidadezinha sequer.

THIAGO

Eita, mas não muda nunca e já estamos entrando no existencialismo, Freud e essas coisas todas que você fica citando e não serve de nada. Agora eu realmente acho que a gente deve fumar um cigarro e relaxar. Sim, sim eu sei, eu não fumo, mas te acompanho pois sei que você precisa. Estou de férias mesmo. Posso fazer o que eu quiser e depois volto.

MARCELO

Eu ainda fico aqui um bom ano.

THIAGO

Está bom?

MARCELO

Fantástico!

Começam a subir as escadas rolantes. Silêncio. Começam a falar depois que pisam no primeiro degrau.

MARCELO
Eu sempre penso em um assassinato nessas escadas.

THIAGO

Outra paranóia.

Silencio entre os dois.

THIAGO

Mas eu gosto dos seus assassinatos, desde que, você não queira passar isso pra vida real.

MARCELO

Nem vou tentar, apesar do existencialismo e da falta de opção nos roteiros eu acho que isso tudo é balela. Na verdade eu estou bem.

Silêncio novamente, os dois chegam ao segundo lance das Rolantes escadas.

MARCELO

Um minuto e 18 segundos para subir essas escadas.

THIAGO

Como você sabe essa merda?

Marcelo

Responde rispidamente sem olhar para Thiago.

Cronometro.

THIAGO

Sim... sim... desses de celular.

MARCELO

A gente perde muito tempo nos transportes, nunca é produtivo isso. Uma cidade perfeita que você vai de um lado para outro em milésimos de segundo, não perde tempo com as coisas idiotas, não vai ao mercado, tudo é rápido como na Caucânia do Musil

THIAGO

De forma ríspida

E maquinas de suicídio como no futurama.

MARCELO

Eita, macho! relaxa.

THIAGO

Que dialeto você está falando? Estou com você a alguns dias e já peguei isso.

MARCELO

É estou convivendo com muita gente diferente e com a mesma língua portuguesa de sempre. É bom.

THIAGO

Sorrindo.

Um minuto e 18 segundos.

MARCELO

Acabamos as escadas. Ainda tem mais.

Escadas da saída.

THIAGO

Mais um pouco.

MARCELO

Fez o que ontem?

THIAGO

Praia.

MARCELO

Eu apertei os mesmos botões de sempre.

THIAGO

Vamos acabar de subir isso e ficamos perto do Fernandinho.

MARCELO

Ah, sim, o pessoa. Vamos tirar uma foto?

THIAGO

Nem fudendo.

Saída do metro, Marcelo encosta na parede do metro. Tira o pacote de cigarros da mochila. Abre o pacote e bate duas vezes na carteira com a ponta do cigarro. Olha delicadamente para o cigarro e acende o cigarro com um isqueiro cromado Zippo.


THIAGO

A mesma mania de acender o cigarro como o Jack Nicholson em Chinatown.

MARCELO

É só pra te irritar. Saudades de você seu merda.

THIAGO

Eu sei

Marcelo traga delicadamente o cigarro.

MARCELO

Sou operador de telemarketing. Tenho dois botões a minha frente. Um diz sim. O outro diz não. Mas tenho 12 intervalos de um minuto para beber água.

THIAGO

Impossível fazer isso.

MARCELO

Eu fiz, tava de ressaca. Mas poderia fazer 24 intervalos de 30 segundos. Esse é meu objetivo. Um minuto pra beber agua é muito tempo.

THIAGO

Eu prefiro ser operador de Pare e Siga, a ser essa coisa de dois botões que você diz. Rola uma emoção e ainda pode ser que você vire um psicopata destruindo carros, colocando a placa errada.

MARCELO

Operador de Pare e Siga! Que porra é essa?

THIAGO

É aquele cara que fica na estrada em construção com uma plaquinha (pare e siga) para orientar os carros.

MARCELO

Responde sorrindo.

É muita emoção esse cargo.

THIAGO

Morena bonita essa eim?

Marcelo

Sim, sim...

Silêncio ao ver a morena passar. Marcelo traga mais uma vez o cigarro. Silêncio entre os dois. Os dois se olham..Olham o Fernando Pessoa e um turista a tirar fotos abraçado na estátua. Olham o restaurante "À brasileira!"


THIAGO

Ainda continua odiando o Bergmam?

MARCELO

Claro, claro! Mas eu não odeio o cara. Apenas acho ele pesado demais.

THIAGO

É património da humanidade pela UNESCO.

MARCELO

Grandes merdas, fico com o Antonioni.

THIAGO

Eita! Você não muda.

MARCELO

Ele é sueco.

THIAGO
E o que tem isso a ver?

MARCELO
Não gosto dos suecos.

Thiago faz um gesto interrogativo.

MARCELO

Uma menina que estava comigo gostava mais de suecos. Foi difícil convencer ela. Não gosto de suecos.

THIAGO

Essas suas afirmações categóricas que não querem dizer o que você pensa apenas para dar um ar de graça... E a mulher te trocou por suecos... Fique só com o Antonioni mesmo.

MARCELO

Engraçado isso, não sei nada sobre eles..

THIAGO

Boa!

Silêncio entre os dois e Marcelo dá mais um trago no cigarro.

THIAGO

Vamos pra onde?

MARCELO

Te mostro um mirante logo ali.

THIAGO

Acaba o cigarro.

MARCELO

Sim, sim.

THIAGO

Morena linda de novo.

Marcelo traga mais uma vez o cigarro, os dois levantam e começam a caminhar.

terça-feira

O homem sem qualidades

“E como a posse de qualidades pressupõe uma certa alegria pela sua realidade, é legítimo prever que alguém a quem falte o sentido de realidade até em relação a si próprio possa um belo dia, sem saber como, encarar-se como um homem sem qualidades.” Robert Musil.

Um homem conhece qualquer cidade do mundo pelos passos. Hoje ando procurando citações já que minha vida tem virado fragmentos. Roubo mesmo. Musil pensava em seu homem sem qualidades que vivia em Viena.

Quando abri os olhos eu estava novamente em uma festa. O lugar que interessa. Flerte. Blefe. Não olhei os passos. Demorei para reconhecer a cidade. Pelo frio, pelo céu, pela lua e o conhaque eu estava na capital do império Austro-Húngaro.

As pilastras do palacete me iludiam o frio e a luz de Viena. Decido aceder um pouco ao convívio. As roupas e as cores tinham que trazer as respostas, já que não olho para o chão. As bocas vermelhas. O batom que não se usa mais.

Bocas lindas. Uma coleção delas me ouvia. Eu estava confundido de sentidos. Preciso olhar um pouco mais. Olho e vejo o Redentor. A lua.

Quanta distancia eu delirei em duas cervejas.

Era festa das grandes. Iluminada.

Eu queria ser Tom Wolf e andar por festas com Andy Warhol. Festas numa NY qualquer. Quero a verdade da burguesia dançante. Flerte. Blefe.

Ela estava linda. Não ligava. Não notava. Sentada à beira da piscina: sonhava. Olhava movimento e luz. Arrumava o cabelo. Não me notava. Conversei na mais interessante das vontades e vantagens. Não olhava. Era de silêncio.

A piscina era outro além. Coberta de uma neve estranha para um Rio de Janeiro, servia, para, nos meus instantes de realidade, fingir Viena. Mas era longe. Frio.

Ela silêncio.

De outra festa vinha a moça do vestido amarelo. Os assistentes do artista. Eles vieram comemorar a folga. Hoje não ilumino nada. Eu cumprimentava as pessoas fingindo importante.

A normalidade fora interrompida por um Tibum. Microondas e videocassetes voavam. Surreal e melancólico. A multidão enlouquecida com a modernidade liquida.

As bocas vermelhas sumiram. Só uma boca vermelha me interessa.

Musica não tocou. Era frio. E o que sobrava do movimento rápido do tocador de discos congelava. As ondas não chegavam longe. Não havia música. Só movimento. Como se toda intelligentsia estivesse satisfeita e burguesa. Todos em seu delírio de solidão. Ninguém mentia. Eu não mentia o que era realmente raro. Não sei se era por conta da sombra de Glauber, quem vem dando o tom dessas festas, que gritava eternamente sua terra em transe nesse Parque Laje que eu menti Viena. Ninguém mentia.

As bocas vermelhas lembravam um tempo passado onde todos se amavam, se encostavam, pagavam peitinho e se jogavam na piscina. Tempo passado. Microondas voam e ninguém ama. Hoje não há vontades. Ninguém se joga. Microondas voam e Glauber delira. Ninguém beija.

As bocas vermelhas decidiram: vamos nos vender no mercado. Deixamos a consciência dos Parangolés, seus movimentos e cores, trancados no Parque Laje e sem sua força de Rua! Pra rua nos vender no mercado. A festa tinha que começar.

segunda-feira

Fragmento

Mãe, o Fernando Pessoa me pediu um cigarro
em Lisboa
O Fernando pessoa, mãe, me pediu um cigarro
A gente ria, a gente ria
E fumamos
Tudo isso entre o Largo do Camões e o Alto
O alto do Bairro que é Alto
Tudo isso entre o chão de Camões e o Alto
Tudo isso entre o que eu sou e o que será
Um cigarro, mãe
O Pessoa me pediu um cigarro
em Lisboa

sábado

A balada do amor inabalável, a ressurreição de Glauber e a intelligentsia Carioca

Noite interessante, pra não dizer das melhores, já que tudo vai caminhando por camadas de músicas estranhas, um sábado carioca, onde tudo vai estar suspenso. Camadas de músicas estranhas cobrem o ar. O carro mal estaciona e já pensamos nas estratégias para fugir da seca lei. A grosso modo, fugir não é a melhor saída. Decidimos apenas cortar uns arames das grades que cercam o presídio da realidade. As portas se abrem e nada mais justo em noites de artistas de renome internacional, Korda e seu Guevara imortalizado, ganha um bigodinho rosa, simpático.

Guevara e seu bigodinho rosa dariam o tom da noite. Marxistas, gramscinianos e coloridos triunfantes terminariam a noite sozinhos, por conta da ousadia do rótulo.

Tudo isso em camadas de músicas estranhas, de uma festa, em que apenas três CDs embalavam. Eu sou do tempo em que se alugava CD. Eu sou do tempo do Vinil. Nunca foste do tempo do Vinil, moça bonita do laço de fita. Seus vinte e dois não lhe permitem. Tudo bem, sou do tempo em que o Vinil virou CD. Mais justo para uma noite real.
Para o narrador sobrou o CD numero um, com musicas de um certo Lado B da Legião Urbana, triste tortura para que ele se lembre de um tempo passado, onde até amava. Um CD do Legião. Para os outros personagens, músicas claramente selecionadas no tempo da escrita, já que não carrego gravadores, caneta e nem papel. É festa e já foram traçadas as estratégias para fugir da seca lei.

Toda intelligentsia carioca estava presente. Ipanema. Bonitona e luxuosa. Cabelos e roupas meticulosamente desorganizados. Tudo muito bem disposto segundo as leis do Feng Shui. Tudo meticulosamente desorganizado.

Para algum desavisado, as drogas eram livres, então não se surpreenda ao virar a primeira porta à esquerda e alguns barbudinhos estiverem coçando do nariz. A primeira porta à esquerda do corredor, bem longe do Che, mas muito perto dos outros que virão.

Nem todos se conhecem, todos querem se conhecer e nisso – como que arte maior – todos desfilam suas vantagens:

Eu sou músico. Faço as letras, cada dia tem ficado melhor. Músicos de primeira. Logo eu esperava o erro, que deixaria o gajo do Alfama toda noite sem ninguém, um gajo sem fama: mas nada muito profissional o que a gente faz não. A gente tá começando. No tempo em que as vantagens se desfilam, cometeu o suicídio da conquista. A musica que lhe deram: no ar da nossa aldeia... há sexo, drogas e talk show....

O parêntese. Tudo isso o narrador aprendeu num curso de 3 dias sobre a arte da conquista: minta, mas minta direito. O fecha parêntese.

As roupas coloridas desfilavam. Era noite das internacionais. Não só pelas bandeiras de todos os países da América Latina que decoravam, desequilibrando, a Ipanema bonitona. Gays e lésbicas iam a caça. Os héteros já chegaram caçando. Alguns, e a maioria deles, não estavam preparados para a arte da inclinação e plantavam como chatos atrasando os amigos. Chatos pequenos-burgueses de All Star. O mesmo All Star em cada pé.

Para as uruguaias presentes não faltou animação e gente fingindo um espanhol. Eu não invento moda. Fiquei na minha. A primeira música que me deram: parece cocaína, mas é só tristeza...

No canto fiquei. Era dia de guardar os meu(s) amores ao meu cigarro e ao canto da sala, grandona. Já que, nesse mundo prostituto, eu fico com os meus amor(es) para maior reflexão. Nada disso seria escrito sem um senhor a refletir.

A dona da festa desfilava. Nem era preciso iluminar, seu vestido amarelo não dava espaço aos artistas de outros carnavais. Seu vestido tinha luz própria. Era capaz de dizer não sem meias palavras. A musica que lhe deram: Everybody's Looking for Something. Assim, vago mesmo. Todo o Mundo procura, mas Ninguém quer ser achado. Para lembrar Gil Vicente.

Mas tinha muita gente, a festa ficaria longa demais e o leitor, mas o leitor não perde tempo com palavras em dia de balada.

Até passou um cara, meio João Paulo Cuenca e disse incisivo: o bom mesmo é uma mulher indo! Uma mulher indo! Não lhe deram música nenhuma. Foi.

Eu sou do cinema! Todos calaram. Como que uma tag invisível, senha para angariar melhores posições na noite do desfile das vantagens. Todos param e reparam no canto da festa. O homem do cinema se cala, carregava uns assistentes e era feliz. Ouvia a reclamação de uma patricinha intransigente. Patricinha que merece um parágrafo.

Gramsciniana, salto agulha, coxas enrijecidas, um quê de pecado, morreu na praia pois era demasiado para um bigode rosa. Dançava. Dançava o que vinha a sua mente insana, dançava as músicas que queria pois alguém deve ter dito pra ela que era ela linda demais para a tal festa dos desfiles. Enquanto tocava algo parecido com Cake, talvez ela não sobrevivesse ao erro, ela dançava alguma coisa da Bahia, mas nem era dia. Perdeu. Ficou no canto falando de sua tese de mestrado na Unicamp.

Os que tiveram sorte, esses, não precisam de conto ou crônica. Escorreram pelos quartos ou vomitaram qualquer coisa absurda. Mas triunfaram no desfile.

O narrador já tinha preparado toda a luz. Era do Cinema. Gostava de silhuetas em contraluz, posicionava luminárias ao meio da sala escura para descortinar algum rosto interessante que o fizesse mover. Parado ficou. Seu cigarro cansado apagou. Mas nem era tristeza, era alegria de iluminar.

As uruguaias deram um show, seja por dançarem Roberto Carlos e seu carro vermelho. Seja por suas calças estranhas desacompanhadas de outras peças que combinassem. Ninguém se atreve a “espanholar” enquanto o Che de bigode rosa olha por todos.

O caso justificante de conto, de crônica, peça de teatro surreal, vem a seguir. Junto com todas as músicas tocadas de uma única vez, nas pausas fazia-se o entendimento. A polícia também veio buscar seu qualquer. Escondemos os baseados, mas violento e digno mesmo de operação era a música que incomodava os homens e mulheres solitários dos andares acima e, quem sabe, abaixo. A policia se foi. Os baseados voltaram e os narizes continuavam a farejar sangue ou farinha.

O justificante, não percamos o foco. Já que é a única coisa para que serve uma objetiva: encontrar o foco.

Ela, a moça do vestido amarelo, caminhava. Nenhuma luz foi colocada a seu favor, já que vinha iluminada por si. Era maior que o cinema. Trazia a amiga. Essa sim, para ela, recebeu o tratamento colorido de O Conformista, com toda humildade da expressão. Surgia silhueta em contraluz e caminhava para a luminária, devidamente colocada a meio da festa, pelos assistentes do narrador. Iluminada era linda. O cabelo meticulosamente desorganizado e como sou das onisciências o decote de sua blusa pela parte de trás já animava.

Ela adora cinema. Minha amiga. Você vai adorar conversar. Iniciamos. Sem muita paciência quando é de costume observar. Adoro cinema, sou grande produtora... E por aí seguia o desfile das vantagens. Soube que você está a fazer um filme sobre o Coutinho. No fim de semana, a resposta intransigente. Sim. Adoro. Vi Jogo de Cena e tantos outros. Começou o seu almanaque de tags. Cinema. Coutinho. Produção. Montagem. Mas não gosto muito das coisas de lentes e luz não. Pedi para apagarem a segunda luminária, posicionada para quando chegou à cadeira. Não gosto muito de lentes e luz não.
E continuava. Explique melhor o seu documentário. Desfilei vantagens. Arte das que eu sou mais capaz, estava apenas sentado. Estratégia para fugir da seca lei. Desfilei vantagens. Ótimo, adorei. Quer uma cerveja? Quero. Desfilei mais uma vez. Agradava. Mas o melhor mesmo para esse seu documentário seria entrevistar o Glauber Rocha. Subitamente, o ano de 2009 me veio à cabeça, estava pronto para enfrentar a seca lei. Ele é ótimo, mas é outra parada. Você tem que pegar ele pra você. Entrevista ele. Pois quando eu entrevistei o Glauber foi a minha vida. Seus vinte e dois também surgiram subitamente à minha cabeça. Estava preparado para desfilar vantagens. Nós marcamos para semana que vem. Ele é super acessível não é? Foi ótimo. Silencio. Vou buscar uma cerveja.

A música que me deram: nossa senhora do cerrado, protetora dos pedestres, fazei com que eu chegue são e salvo na casa da Noélia. Nono, nono, nono nono.

Apagamos as luzes. Atravessamos o túnel que leva a realidade da zona norte. É domingo.

terça-feira

O sonhador e "o não"

Meteu a mão no bolso, puxou fundo, afastou a carteira e tirou a chave.

Suspirou, limpou as lágrimas do rosto, fungou e meteu a chave na fechadura. Não, não o veriam chorando. Não podiam, simplesmente era algo constrangedor, exagerado, forte demais.

O choro escondia a decepção, a frustração e a desilusão, após uma certeza que o inundara com uma força tremenda durante tantas semanas.

Mas, mais do que isso, lhe perguntariam o porquê. Iam querer saber detalhes, dar conselhos, fazer comentários.

Comentários...isso era tudo o que ele não precisava naquele momento. Sua única vontade era pensar, ficar sozinho, raciocinar. Ele próprio não estava entendendo o motivo de tamanho choro. Afinal...ela dissera apenas "não". Simples assim...

Precisava pensar. Mas, antes de pensar, precisava abrir a porta, entrar em casa. Não podia ficar parado no corredor tentando controlar o choro.

Entrou. A velocidade dos passos estava acima do normal, é verdade, mas depois ele contaria que disfarçou bem. Mas era difícil continuar disfarçando em uma casa com quatro pessoas, então a saída era o chuveiro.

A reflexão não ajudou. Não conseguia pensar direito, o barulho da água caindo o distraía. Deixou as lágrimas rolarem. "Por quê?", se perguntava. "Mais uma vez...por quê? O que de mais está errado?".

Não achou a resposta, e depois achou que não havia nenhuma. Mas decidira conversar com alguém, dividir as angústias, os problemas, já que sozinho não era possível.

E decidiu conversar...

***

A chuva já havia passado, agora restava apenas a rua molhada. No corpo, levava sua velha capa de chuva (que a mãe ironizava, dizendo que estava grande e que parecia "do irmão mais velho") e, nas mãos, carregava um guarda-chuva automático, fechado.

No rosto, a expressão era dura, irritada, furiosa. A mesma que quase fora de choro há pouco mais de dez minutos. "Por quê?", dizia de si para si, enquanto descia a Rua Lopes Quintas. "Por que me mandou ir até lá? Não podia me dizer tudo pelo telefone? Me fez subir para dizer que eu deveria descer e ficar por aqui? Quem pensa que é, para me tratar desse jeito? E ainda me deu este telefone aqui. Vou jogar esta porra no lixo, não quero nem saber. Vá à merda, esteja onde estiver".

Irritado, ele chutava pedrinhas, andava com o passo duro, embrutecido. A raiva escondia a decepção, a frustração após uma certeza que o inundara com uma força tremenda durante as últimas semanas.

Não sabia quando a raiva passaria, mas não desistiu. Ainda irritado, lembrou que a esperança se renovaria no dia seguinte. "Desta vez...vou colocar as cartas na mesa."

***

Olhou no "horizonte" da rua, viu o ônibus e fez sinal. O coletivo parou, ele entrou. Vestia camisa social, calça jeans, sapato. Depois de passar o cartão na roleta, se sentou, tirou o MP3 do bolso, ligou e começou a ouvir.

Uma da tarde. Estava adiantado...melhor assim, pensou.

Distraído, ouvia música enquanto pensava no dia de trabalho que teria pela frente.

Foi então que surgiu a idéia. Veio rápida como um raio, atravessando a mente sem pedir licença - aliás, isso andava acontecendo bastante ultimamente.

Começou a se lembrar de quanta coisa conquistara nos últimos tempos. A começar pela música que ouvia. Listando mentalmente, percebeu quantas coisas boas haviam acontecido.

E se lembrou de que isso começara em algum ponto. Sim...como pudera esquecer?

No dia em que ela disse "não".

"Ah, se eu pudesse dizer isso a ela. Não...não lhe daria esse gostinho. Que bom que é melhor do jeito que é."

Sorriu e aumentou o volume da música enquanto o ônibus entrava no Túnel Rebouças.

quinta-feira

Qual é o crime?

Outro dia, na Auto Escola, o professor da aula teórica estava revoltado com o código de trânsito, com as leis do país, com a situação da violência e com as mortes no trânsito. Enfim, com tudo e mais um pouco. "Isso que estamos vivendo é o país da sacanagem. O próximo passo vai ser criminalizar a honestidade".

Que bobagem, pensei. Isso jamais aconteceria.

Chegando em casa, minha mãe fazia imposto de renda, e discutia com a minha tia formas de burlar o fisco. "Então não declaro isso tudo...o que você acha? Será que me pegam na malha fina?".

Depois que minha tia se afastou, comentei numa boa: "Mãe, não faz isso, você sabe que é errado". Para que... "Ah, você não entende, você não sabe de nada, não sabe o que é ter despesa, e pagar dinheiro ao governo para eles nos roubarem".

Ao sair do quarto, ouvi ela dizendo à minha tia para comprar um bolinho e levar à enfermeira da vovó no hospital. "Tá vendo, mãe? Depois você fala dos políticos. Tá fazendo igualzinho. Isso é corrupção, é suborno. Vovó tem que ser bem tratada naturalmente". "O que é, filho? Virou bastião da honra e defensor da moral? Não é corrupção, é só um agrado, não tem nada de mais".

Fui trabalhar, e na volta, peguei carona com meu chefe. Cansou de ultrapassar pela direita e não dar passagem a ninguém. E ainda se irritou quando eu quis guardar um papel de bala no bolso. "Joga fora pela janela, porra. Depois o gari limpa". Não adiantou argumentar, ele estava irredutível e me forçou a atirar o papel fora.

No caminho, ele foi parado por um guarda. Estava com o documento vencido, e o policial exigiu uma "cerveja" para liberar o carro. "Tem algum aí? Depois eu te dou", ele me disse.

"Não vou dar dinheiro para subornar guarda, porra. Você está errado, tem que pagar, apenas isso."

Para que...me olhou de cara feia o resto do caminho. Ele e o guarda, que acabou aceitando liberar o carro sem cerveja nem nada.

No dia seguinte, fui fazer uma matéria, e na volta, conversava sobre desonestidade com o motorista do jornal. "Pois é, esses deputados, senadores, vereadores...tudo envolvido em esquema, tudo safado, ninguém presta", dizia ele.

"Pois é. E o pior é que a maioria das pessoas reclama muito, mas se estivesse lá, fazia igual".

Ele ficou calado, e depois de alguns instantes, mandou na lata... "É...se eu estivesse lá...eu também faria esquema, ué. Ia arrumar o meu. Todo mundo faz, porque eu não vou fazer?".

Dizer o que? Fiquei calado. O exemplo estava mais do que dado.

O professor estava certíssimo...exceto por um detalhe.

Não é preciso uma lei para criminalizar a honestidade no país.

Ela já virou delito hediondo há tempos.

sexta-feira

Sonho ou Utopia, Absoluto ou Relativo?

Uma noite eu tive um sonho.

Sonhei que estava acordando para ir trabalhar, e que era um belo dia de sol. Depois de tomar café, eu pegava um jornal e começava a ler.

Lia que a taxa de homicídios no Rio havia caído pela metade em um ano, com dados de um instituto sério e independente, sem ligação com as autoridades. E o de roubos estava em queda há dois anos.

Na parte política, a principal notícia era sobre corrupção. Políticos andavam com medo de suas tramóias serem descobertas, e evitavam a imprensa, pois vários colegas já haviam ido para a cadeia, e outros, perdido todos os seus bens, com uma série de sanções à própria vida, obrigados a depender do serviço público, depois de comprovadas as acusações.

E que o governo anunciava novo recorde de empregos, reiterando a necessidade de trazer estrangeiros, o que já gerava reclamações por parte da população.

Na seção de Esportes, havia notícias dizendo que o Flamengo estava conseguindo pagar suas dívidas, que Fluminense e Vasco não brigavam mais, que o Botafogo não se remoía mais por suas derrotas, que os quatro grandes do futebol Carioca brigavam pelo título nacional. E que os outros esportes estavam crescendo. Éramos campeões mundiais de vôlei, basquete, handebol, natação, ginástica, vela, iatismo, entre outros, e apontados como a maior potência olímpica da história, graças a um belíssimo projeto social esportivo.

Depois de tomar café, eu ia para a praia. O mar era de um azul-brilhante sem fim, sem poluição. E tampouco havia cachorros na areia. Em vez deles, tínhamos turistas, de todas as partes do mundo, admirando a beleza e a tranquilidade do verão carioca, a amabilidade do povo, o jeito caloroso com que os cariocas recebem e tratam as pessoas.

Depois de dar uma volta por aí, respirando o ar mais puro da tranquilidade - não absoluta, mas relativa - voltava para casa para almoçar, e ia trabalhar.

Em vez de ônibus sujos, quentes e fedidos, com gente quase caindo do lado de fora a cada freada, eu ia de metrô. Um metrô como é hoje, sério e organizado, mas com mais de dez linhas, ligando cada canto da cidade. Sem falar em barcas, trem suspenso, ônibus em corredores exclusivos. Mas, como nada era perfeito, tinha muita gente reclamando dos altos preços das passagens.

E descendo da estação em direção ao trabalho, podia andar com calma. Atento, sempre - nunca se sabe o que se encontra na rua - mas tranquilo. Enquanto isso, um grupo de policiais levava para a delegacia um menor que tentara roubar a carteira de uma senhora.

Uma paz, uma paz não absoluta, mas relativa, que me permitia pensar apenas nos problemas do trabalho, no que ia fazer à noite, em como gastar o dinheiro que sobrava no fim do mês.

Mas, como nada era perfeito...

Acordei e percebi que era apenas um sonho. Não um sonho absoluto...mas...relativo. Será que não era melhor ter continuado dormindo?

domingo

The spirit of Austria



Por aqui não é permitido vender Absinto. Num certo mercado negro você pode até encontrar, mas em pequenas embalagens. O grande barato aqui é essa simpática bebida de nome Stroh, que é a abreviação de um outro nome muito grande e muito complexo para esse humilde blogueiro. Nada mais nada menos do 80% de álcool. Vai encarar?
E para minha surpresa uma garrafinha de Pitu escondida no canto da loja. É isso, acho que é saudade do Brasil.

quarta-feira

Réveillon no Piscinão

A última chuva do ano durou cerca de vinte minutos no Piscinão de Ramos, na noite de 31 de dezembro. Mas as pessoas pareciam mais empolgadas com os shows de artistas populares - ou popularescos? - do que com as gotas que molhavam as roupas impecavelmente brancas. No entorno do lago artificial, cerca de 50 mil cabeças se aglomeraram.

Apesar da multidão, houve pouco trabalho para as autoridades. Acostumado a um cotidiano de violência, as redondezas do Piscinão, incrustado em meio ao Complexo da Maré, vivenciaram uma trégua para a chegada de 2009. O caso mais grave da noite deu-se por um bebum que perdeu o fôlego ao nadar de braçadas nas águas de Ramos. Ele foi levado para o Hospital Getúlio Vargas, na Penha, e já deve estar em casa, a essa altura do campeonato.

Com expectativa de superprodução, o Piscinão almejou equiparar-se a Copacabana. No entanto, os parcos fogos de artifício patrocinados pela Prefeitura (demissionária) do Rio reafirmou a nossa localização geográfica: do lado de lá da cidade partida. Das duas balsas propaladas, somente uma disparou o foguetório.

Próximo a uma farta ceia, o coordenador da Riotur no evento explicou, entre um gole de prosecco e outro, que os fogos foram concentrados em apenas uma balsa. O motivo? "Questões logísticas", respondeu, sem muita certeza. Faltou só combinar com o público.

A ausência de uma das balsas não comprometeu a farra. No entanto, houve quem desdenhasse. Moradora da Maré há 56 anos, a aposentada Antonia Maria Conceição, de 76, lembrou réveillons na saudosa - e outrora limpa - Praia de Ramos.

- Antes era bem melhor do que hoje. Comíamos manjar na areia. Mas agora está bom também - resignou-se.

"Rusticamente confortável" é a maneira como Lindoel Ferreira, de 37 anos, se referiu à última aquisição do ano. A barraca de quatro lugares que custou R$ 250 ao encarregado de expedição já abrigava a esposa Sara, de 33 anos, e as filhas Natalia e Rosane, 14 e 9 anos, respectivamente. Prevenido, Josiel disse que já sabia que ia chover no dia 31. Por isso, resolveu levantar acampamento nas areias do Piscinão.

- Trouxe uma garrafa de champagne que está na bolsa térmica, cheia de gelo - contou.

Era comum, ao transitar em meio ao público, ver uma grande quantidade de famílias que levaram assados, frutas e bebidas. Todos os itens mantinham-se bem arrumados em cima de uma daquelas mesas de armar. Aqueles que preferiram sentar nos quiosques do lago artificial consumiram, em grande parte, peixe frito e cerveja.

- O que está saindo mais é o peixe completo, que custa R$ 30, e o latão da Antartica, que é R$ 3. Investi R$ 5 mil em cerveja, e espero que o ano novo me dê retorno - pediu Heloísa Helena Teixeira, de 44 anos, dona do quiosque Quatro Estações.

A segurança foi o fiel da balança na hora de decidir para onde a família de Ângela Baldomeno iria passar a virada do ano. Em outros réveillons, Copacabana mantinha-se como a favorita. Mas a Princesinha do Mar perdeu a majestade para o primo pobre da Maré.

- Viemos de ônibus desde Magalhães Bastos, onde moramos. Foi rapidinho. Muito bom o réveillon daqui. Eu costumava passar em Copacabana, mas lá tem muita briga e confusão. Aqui me sinto mais segura - revelou ela, mesmo antes de saber que cinco pessoas tinham sido baleadas na festa da praia mais famosa da Zona Sul carioca.