segunda-feira

Memórias de um Aedes

Acordei em um vaso de plantas na Zona Oeste do Rio. Era segunda-feira e estava sol quente, em contraste com a água onde repousava: morna e calma. O sinal foi dado pela fome, por isso tive que sair dali. Zanzando pelas ruas, nada me parecia apetitoso. O cheiro anda meio artificial, um perfume repelente ruim de agüentar. Ouvi dizer que há uma nova droga na moda, chama-se "Off". Não sei a origem da nomenclatura, talvez você fique "off" durante a onda ou algo parecido. Dizem inclusive que já foram registradas algumas mortes por conta dele.

Meu único desejo hoje era um alimento saudável, balanceado e saboroso. É melhor ir até a Zona Sul em busca disso, quem sabe não pego uma criança do Leblon ou uma garota de Ipanema. Percorri alguns quilômetros, fugi de alguns tapas e raquetes que dão choque. De repente, uma bunda. Ela era rechonchuda e estava empinada para cima, presa fácil. Parecia suculenta, por isso não resisti. A picada foi inevitável. A dona estava tão entretida com seu Ipod, tomando sol na varanda, que nem se incomodou com a minha presença, muito discreta por sinal. O almoço foi garantido.

Encontrei uma outra galera numa caixa d'água de uma casa abandonada em Botafogo. Eles estavam preocupados com as recentes batidas nas quebradas onde a mosquitada costuma se reunir. Há dois meses, lembravam, era uma festa. Não havia pneu velho ou garrafa encharcada que não se tornasse uma festa por estas - e outras - paragens. Hoje, o clima é de enterro. Os mais assustados já cogitam até se mudar para São Paulo, ou outro lugar que valha. Os mais ranzinzas reclamavam da mudança de postura do prefeito do Rio, aliado de primeira hora que veio a capitular.

O zum-zum-zum logo foi repelido com a passagem de um fumacê e dos temidos fiscais mata-mosquitos. Voei pra longe, sem nem pestanejar (até porque são muitos olhos piscando). Deu fome de novo e passei por uma escola em horário de lanche. Desta vez, não fui bem sucedido. As crianças estavam todas em polvorosa com a campanha impetrada contra a minha classe (ou seria espécie?). Por onde eu passava parecia que tinha ganhado um prêmio, dada a quantidade de palmas por segundo. Voei. No trânsito intenso, um braço dava sopa para fora do carro. Não pensei duas vezes, e tasquei-lhe uma picada.

Os mais velhos contam que a primeira cruzada contra nós deu-se ainda no início do século XX. O nome do carrasco: Oswaldo Cruz. Não entendo o porquê de tanta perseguição, estamos aqui desde sempre. O clima é favorável, chove e faz sol com uma facilidade incrível. De 1999 para cá, foram pelo menos três campanhas. Se eu tivesse uma espinha, sei que ela ficaria arrepiada ao ver os cartazes que beiram o Velho Oeste, ainda que sem oferta de recompensa. Às vezes fico pensando: "porque não nasci pernilongo?"

domingo

A culpa é (só) de Fidel?

Encontrei uns velhos professores comunistas em um bar da Tijuca, domingo desses. Eles ainda continuam inflamados ao defenderem seus pontos de vista, apesar da suavização que a falta de barba e as roupas burguesas podem proporcionar. Entre um chopp e outro, falamos sobre a percepção de tempo, política, drogas, educação e filosofia de boteco. Pude extrair, ainda que sob o efeito etílico, algumas aspas emblemáticas:

"O apartamento dela parecia aquele filme 'A culpa é de Fidel'. Era uma espécie de albergue, onde todos se encontravam para discutir. Estávamos no frenesi da abertura, mas a filha dela não parava de chorar. Então eu ia lá ficar com ela, e acabava dormindo, enquanto as mulheres de peito debatiam na sala"

"Nossa geração transpôs muitas barreiras, ao contrário do que acontece hoje. Tivemos que ir contra a família e a hipocrisia dos costumes para experimentarmos nossa vida política, sexual e espiritual. Hoje, até pelo ambiente em que vivemos, os jovens podem fazer experimentações assim como quem vai ao shopping. Isso é bom por um lado, mostra que o esforço não foi em vão"

"Dilma é boi de piranha. O Lula é uma cobra, ele sabe que o PT não terá força para fazer seu sucessor. Ele está barganhando uma vice-presidência para o partido"

"Na década de 1970, nós experimentamos tudo. Mas não era como hoje. Ia gente lá em casa com uma lata enorme de pó, e a gente só cheirava um pouquinho. Fumávamos bastante, mas cheirávamos pouco. Na década de 1980, a coisa ficou mais grave e eu tive que fazer um esforço enorme, ficar quieta, para me livrar daquilo"

"A educação pública hoje faz com que os professores fiquem desestimulados. Nos cursos pré-vestibulares e na escola particular, eles sentem-se uma estrela, apesar de trabalhar sem as garantias do serviço público. A educação de excelência da escola pública deve ser resgatada"

"Quando você tem 40, queria ter 35. Quando completa 50, queria 45. Ao chegar aos 60, morre de saudade dos 55. Aí, no fim da vida, percebe que não aproveitou nada daquilo"

"A juventude é o momento em que devem ser feitas as opções políticas, sexuais e filosóficas que podem orientar o resto da existência"

sábado

será conto?

Morena

Conversei com a mais bela mineira da região. Ela falou de estudos e tudo mais. Eu tirava as espinhas do peixe que comia com a mão. Deveria engolir? Não sei. Como se faz com as espinhas e uma moça tão bela?

Rená Tardin

quarta-feira

Jorge

Jorge é um personagem de um conto que não devo escrever. Ilumino Jorge. Jorge assim simples. Sem uma palavra depois. Jorge tem uma mania estranha. Um tanto quanto cômica, para não se falar em um caso de filme Noir.
Aquela luz - primeiro em seu sapato branco, lindamente engraxado - vai caminhar com Jorge até o fim do - que seja - conto, crônica ou roteiro.
É certo que não fuma, mas como poderei desperdiçar essa luz? Jorge segura seu cigarro Ritz com a mão direita, ele está sentado em um banco na porta de casa - esperando a conversa e esperando ansiosamente falar da novidade. Seu sapato é branco - insisto. O cigarro queima devagar - traga delicadamente - e seu cabelo é loiro-castanho-caju. Como foi complicado percorrer por essas lojas de departamento para saber o nome - segundo - do loiro que Jorge usa em seus cabelos um dia brancos.

- Calça nova Jorge?

- Ganhei agora, junto com o sapato branco - era doutor - a madame não quis dar nada além disso , mas o corte italiano da calça já valeu a espera. E como marquei ponto.

- A minha roupa você nunca vai usar.

- Já medi você com os olhos - é do meu tamanho.

- Sai filhote de cruz-credo!

Jorge ria, tragava mais uma vez o cigarro que não fuma, um riso simples de quem tem toda habilidade. Dificilmente ele fala de seu ofício, mas como as roupas que meu tio usa não são tão boas, Jorge não se importa. Quando tem novidade vem logo mostrar. Ele espera o rico, o fazendeiro, o médico que mora lá na capital - as vezes ele viaja em seu trem. É difícil entender, mas com essa luz ,apenas para Jorge, ele espera mais um morrer de morte sofrida - para que a viúva não se importe e entregue o guarda-roupa. Jorge tem apenas roupas na medida. Diante de tanto tempo na estrada ele vai visitar apenas quem tem futuro, ou melhor, quem não tem dias de sobra. Como quem espera na esquina a observar manequins. Jorge sempre vigia a vítima, ou faz visitas quando o sujeito ainda está de cama - dizem que chora - isso não me atrevo a colocar de palavras próprias. Insisto na luz e no cigarro. O sorriso nefasto-simpático de sempre.

Jorge usa apenas roupas finadas. Esse é o oficio de Jorge. Apago a luz e tudo deixa de sombra.

Rená Tardin

quinta-feira

Casa Cid e a escória da humanidade

É lá que devemos nos encontrar! A casa Cid fundada em 1913 - posso dizer que é um bar pois tenho boas intenções - mas o que eu realmente poderia dizer desse estranho lugar? Vamos para uma breve descrição - já que comecei até com um título - fato que causa bastante comoção a esses dedos cansados de objectividade. O bar recebe todos os dias o que há de pior na humanidade, ou o melhor eu diria corrigindo a construção. O melhor para a poesia e o melhor da humanidade para uma película Noir. Sendo no vício, no ócio e no jogo que se faz uma nação, aqui na Casa Cid é onde encontramos a melhor combinação de bêbados, fumadores invertebrados, gente um tanto quanto sem fala ou sem vida. Todos suspensos no ar apenas pelo copo meio vazio. Opa! Estamos a falar de um bar como outro qualquer? Há Bares que vêm para o bem - diria um itaperunense. A casa Cid recebe todo tipo de coisa pois funciona apenas no horário mais ingrato e necessário para os pés do Bairro Alto em Lisboa (onde a boémia se encontra por aqui). Basta descer as ladeiras, descer o elevador da Bica escorregando em algum objecto plástico - ou se preferir um trenó vermelho - que irá encontrar esse belo bar. Mas é preciso chegar bem cedo pois o bar só funciona das 4 da madruga até 8 da manhã. E é por isso que o que se vê lá pode não ser muito agradável. Um homem pobre e mal cheiroso sendo muito bem tratado pelo garçon. Um homem preso pelo copo no balcão, falando ou apenas tendo uns espasmos necessários para o funcionamento do corpo. Um homem cansado. Uma mulher rindo sozinha. Um homem que fuma com uma prostituta - e nesse bar ninguém pode fumar, mas quem irá reclamar? Todo esse time unido por um ambiente muito agradável e limpo. O povo é sujo mas o bar acabou de abrir. Fiz uns amigos por lá. Hoje nos encontraremos em melhores condições. Lá se vende até café! Vida longa a casa Cid, ao garçon super educado que lá existe - armado com sua vassoura e ignorância imensurável - vida longa a toda essa gente que se encontra sempre no fim da festa.

Cuidado com os copos pois eles costumam voar.

Rená Tardin