quarta-feira

O bom ladrão

Um conto, é disso que chamo essas poucas palavras. Nem quero contar segredos de além, conto mesmo, neste conto o que se passa por ora aqui. Quem vos escreve é o ladrão. Para que sua identidade não venha ao mar de sentenças ainda não aplicadas. E para que isso seja algo realmente ficcional. Estamos a falar de um conto.
O fato é que ele roubava. Ou seria eu mesmo, já que sou o ladrão? Nunca fui entendido das gramáticas, mas trocar o pronome é arte das mais importantes.
Começou na sua juventude a desejar isso. Era tolhido pelos bons costumes visto que morava em uma vila no interior. Mas de certo que desejava. Atravessou continente, libertou-se de amarras leves e agora exercita diariamente o ofício. Era chegado à letras e roubou também o título do conto.
O bom ladrão é um romance de Fernando Sabino que nunca chegou a ler. Achava, ainda nesse tempo, que tinha que ler o livro desde o princípio, passando pelas partes medianas e seguindo assim até o país das maravilhas dos grandes letrados. Nunca passou da introdução.
Roubou – o título - na cara dura e o livro que era romance veio a virar conto. Cabe ao leitor vasculhar por ai, que deve encontrar outro conto, já que não se pode confiar em ladrões de cunho internacional.
Roubava isqueiros, fumava pouco e isso era algo que ele mesmo não entendia muito bem. Mas era articulado com as cores. Nacionalidades. Isqueiros internacionais. Não que guardasse ou coisa do tipo. Tinha certa tendência a perder o fruto do roubo. Isso mostra que nem o titulo do conto sabe muito bem roubar, não é tão bom em atributos tão nobres.
Roubava porque era sua única chance de encontrar os galãs de Hollywood da década de 30 e seus filmes negros. Roubava porque queria viver aqueles bandidos com suas raparigas de perucas baratas. Era tudo na vida uma tendência ao filme Noir. Dinheiro, assassinato e sexo barato.
Roubava isqueiros coloridos. Não era das amizades ricas, em que encontraria um exemplar prateado, como nos filmes que tanto sonhava. Roubava colorido a sonhar com uma vida em preto e branco. Sonhava com a amada e suas cigarrilhas. Nada disso tinha. Já disse que não era dotado de riquezas. Roubava. Isqueiros baratos-coloridos, justificava com filmes modernos de um cineasta que não gostava. Mas justificava. Há quem diga que ele proferia a torto e em directo que só o roubo é justificável. Roubava cada dia a mais.
Certo dia em festa de alto escalão, onde seus editores e futuros artistas do continente velho, todos eles a repetir coisas velhas de fumar, beber e falar da vida do próximo, ou apenas do cu da mulher do próximo, ele se viu tentado ao grande feito de sua vida. Nunca tinha visto com tamanha artimanha das facilidades um isqueiro barato-azul, por mesa de mesma cor e acompanhado da devida caixa de cigarros de duas letras de mesma cor - para que tudo rime e nada seja das grandes mentiras. Pensou em roubar. Conteve-se. Desejava. Paralisava. Cantava. Distraia os amigos. Roubaria.

- Preciso de um isqueiro - gritava o editor.

Ao pé do ouvido de seu fiel interlocutor para assuntos literários, o bom ladrão disse: tem um ali.

- E de quem é?

- Não sei, não sei mesmo.

- Parou de roubar?


Na negativa triste da cabeça, fez com que o editor prolongasse o assunto, mesmo com a pressa de acender as velas para o cumprir de anos de um dos artistas de tão nobre salão.
Tudo parou, claro que só os dois pararam por tanto tempo em um por menor desses. o resto bailava, e eram ondas de danças que faziam gestos ao pobre do isqueiro solitário.

- Nunca roubei de quem não conheço.


Com tamanha poesia, daquela afirmação triste, que impedia nosso artista maior de movimentar-se como a dança que passava de nacionalidade a nacionalidade. A coisa toda voltou ao normal. Parado ficado. O editor, sua pressa tradicional e capacidade para o mundo dos negócios das letras sentenciou, depois de pegar o isqueiro para rápido uso: gostei disso. Escreve um conto que publico na mesma e na hora!

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