segunda-feira

Aquele querido mês de agosto

Um olhar sobre um plano e o seu contracampo. O real e a ficção.

Escrevo sobre documentários e pássaros. Isto está lá no meu perfil. Nunca entendi bem o que isso quer dizer. Conta mesmo é que gosto de certa cinematografia do Real, não só ver, mas também no exercício de realizar. Então vamos falar de docs e pássaros.

Um filme Português



Aquele querido mês de agosto é um filme sobre a nostalgia a Agostinho – segundo o Priberam: são coisas que amadurecem em agosto – e que toma conta de Portugal. É o verdadeiro mês das férias por aqui. Muitos portugueses que moram em grandes cidades voltam para o interior, para rever a família e participar das festas religiosas e festivais de música.
A partir do material real, o cineasta parte para realizar uma ficção com os personagens que encontra pelo caminho. Pelo processo de realização, o que se dá a entender é que Miguel Gomes tinha pouco de concreto quando partiu. Acredito que tinha apenas a seguinte idéia:


Um triangulo amoroso nas férias de agosto e Pimba.

Pimba é uma espécie de forró de roça.
No primeiro ano de rodagem e diante de um material muito rico, Miguel resolve produzir o roteiro e encontrar o que precisa para fazer sua ficção. O seu filme –incluído na Quinzena dos Realizadores em Cannes 2008 – percorre um caminho que poucas vezes o cinema consegue acertar. Há uma linha muito tênue, entre o que se quer contar e o que está a passar em frente à câmera – o tal do Real. E é esse o centro de sua narrativa ficcional, e não há uma tentativa de encobrir os limites do Real, a partir da presença dos mecanismos de filmagem ele tenta transparecer todo o processo. Uma força que tenta o tempo todo atacar o próprio cinema, seja apenas mostrando os refletores, ou o grande “coelhão” – apelido que o filme dá para o microfone - invadindo o quadro.
E quando o Real não serve mais ao realizador é porque ele encontrou a saída. Entra uma questão muito interessante dentro do cinema do Real. O cineasta e sua equipe – pequena – estão no front de batalha, em busca das imagens do povo, a esperar a realidade, essa que fica sempre abalada pela presença da câmera de filmar. Mas se a história é do povo eu sigo com a seguinte reflexão:

“Para que o povo esteja presente nas telas, não basta que ele exista: é necessário que alguém faça os filmes. As imagens cinematográficas do povo não podem ser consideradas sua expressão, e sim a manifestação da relação que se estabelece nos filmes entre os cineastas e o povo. Essa relação não atua apenas na temática, mas também na linguagem”
Jean-Claude Bernardet – Cineastas e imagens do povo.


O mecanismo do cinema do Real que mais gosto é o de deixar-se passar pela realidade, deixar que o tempo passe, no tempo de quem está a contar a história, a festa e o povo. Acho que é por isso que gosto de documentários e pássaros e gosto mais ainda de um Pessoa que diria: Passa ave, passa, e ensina-me a passar!
Pois é difícil entrar no clima da rodagem, deixar-se transparecer por aquilo que se passa, pois logo depois vem a montagem e a coisa desanda. Quando Miguel deixa-se passar pela realidade está fazendo esse tipo de plano no cinema que gosto. A partir do meio do filme encontra sua ficção e começa a correr a frente da realidade. E cada plano “real”, segue-se um contracampo do mesmo. Esse contracampo é que é o encontro da ficção perto demais da realidade que passa.
Então temos um homem de frente pro Real e à frente do Real – de costas, é lógico, mais frágil e pronto a cair – Miguel não cai e realiza um belíssimo filme, um musical, um filme simples de amor, um filme simples sobre a realidade que passa e sobre os pobres mortais do cinema a correr com a câmera na mão.

Lembro de uma passagem interessante na rodagem de O som da Roda, o meu querido Doc. Depois de um dia inteiro de coisas boas, acreditávamos que o filme estava na mão. Agora poderíamos inventar moda e correr – literalmente à frente dos bois. Chegar antes e fazer o contracampo.
- Vamos lá! A gente espera, pois o sol está se pondo... A gente fica lá na frente até os bois passarem. E teremos o melhor plano do filme!

E a turma toda correu a espera dos bois. Mas meu amigo, quando o boi empaca já era. E antes de dois metros do plano ficar pronto a comitiva de mais de 50 bois pára. A luz acaba. É noite para a câmera. Nada de plano.

Em Aquele querido mês de agosto o cineasta português consegue isso em sua segunda longa-metragem, e nos mostra onde colocou o pé no Real e onde esperou pela ficção que surgiria brevemente em um agosto qualquer.
Coloco alguns trechos de Aquele querido mês de agosto. Não acredito que esse filme chegue ao Brasil. Quem sabe antes de voltar eu consiga uma cópia do filme e a gente assiste lá em casa!

Mas fica a pergunta: o que é um contracampo? Explicação simples eu não encontrei. Segue o que João Mario Grilo escreveu em “As lições do Cinema – Manual de Filmologia”

“O contracampo é nesse sentido, um fora de campo especial. Sendo o campo a porção de espaço fílmico incluído no enquadramento, o contracampo é uma porção de espaço equivalente, no mesmo lugar e na mesma ação, obtido pela rotação da câmera sobre seu eixo de, num ângulo aproximado aos 180º.”







Nenhum comentário: