quinta-feira

Passeio no inferno

"Eu não sei como fui parar naquele lugar sombrio. Sonolento como eu estava, devo ter cochilado e por isso me afastei da via verdadeira. Mas, ao chegar ao pé de um monte onde começava a selva que se estendia vale abaixo, olhei para cima e vi aquela ladeira coberta com os primeiros raios do sol. A cena trouxe luz à minha vida, afastou de vez o medo e me deu novas esperanças. Decidi então subir aquele monte. Olhei para trás uma última vez, para aquela selva que nunca deixara uma alma viva escapar, descansei um pouco, e depois, iniciei a escalada"

A definição de Dante Alighieri ao chegar ao primeiro círculo do inferno se encaixaria bem à Rua Manoel Vieira, próximo à selva de pedra do Centro de Duque de Caxias, município da região metropolitana do Rio de Janeiro. Ao invés de encontrar Vírgilio, que poderia nos conduzir na empreitada infernal, avistei uma série de camisas pretas aglomeradas num bar ao pé da íngreme ladeira. Além das vestimentas negras, acessórios pontiagudos, coturnos e toucas contrastavam com o calor abafado de 40ºC. Só faltou o enxofre.

O objetivo de tal empreitada era claro, apesar da predominância do preto. Cerca de 400 pessoas estiveram no primeiro show da banda mexicana Brujeria feito em terras fluminenses. Como em todo bom show de metal, os 'cabrones' do thrash metal não tocaram sozinhos. Cinco outros grupos, entre eles o recém-reunido Taurus, dividiram o palco a la baile funk instalado na quadra do Clube Recreativo Caxiense.

A cerveja era elemento essencial para contrabalancear o suor que aboletava-se pelos pescoços e peças de couro. O esforço físico também fazia-se necessário, já que o CRC ficava no topo de uma ladeira dantesca. Despido das vestimentas formais, os headbangers - eles odeiam serem chamados de 'metaleiros' - expunham tatuagens de diferentes tipos, tamanhos, desenhos e cores. Uns a ostentavam em locais pouco usuais, como o próprio rosto. O pentagrama invertido, que revelaria a verdadeira face do demônio Baphomet, estava entre o top ten das figuras mais tatuadas entre os presentes.

- Esse ano (2007) foi bom. Tivemos Napalm Death, Slayer e agora Brujeria. Gastei mo dinheirão, mas valeu a pena - recordava um banger, camisa dos alemães do Mötorhead, em meio a uma roda de amigos. Apenas um vestia blusa amarela.

Seis cervejas depois, o desafio de, finalmente, encarar a ladeira rumo ao clube. No caminho, o entreouvido da conversa três jovens com piercings, cabelos presos num rabo e cinto de tachinhas, destoou do figurino que portavam:

- E aí? Vamos virar punks?

Esses poderiam ser encaixados na definição de 'falsos'. Eles seriam os que não abraçam o metal como a única lei, e sucumbem aos apelos do canto da sereia pop. Contra isso, estão os 'trues'. O grupo está sempre a postos para atacar, de forma quase inquisitória, os falsos em todas as suas vertentes. Um dos principais lemas é: "True não toma mel, come a abelha". Os ogros do inferno, sem menor sombra de dúvida.

Uma parede descascada em aspecto decadente indicava o clube. Mais do que isso, já chamava atenção desde o meio do caminho os riffs pesados de guitarra e o rufar dos pedais duplos da terceira banda que se apresentava naquela tarde quente de domingo. R$ 30, a entrada - um bilhete dourado com os nomes dos grupos que se apresentariam por ali.

Lá dentro, uma multidão já transitava pelas dependências do clube abertas ao público de preto. Próximo ao bar e a entrada da quadra enfileiravam-se uma série de mesinhas de plástico com CDs, vinis e DVDs raros das mais variadas bandas de metal, acessórios dos mais cavernosos como pulseiras de spike, cordões de caveira e até coleiras. As camisas pretas de banda, não poderiam deixar de figurar entre os produtos vendidos. Eram centenas delas.

Além de cerveja, o calor também era aplainado com o consumo largo de maconha. Os headbangers de hoje não tem mais preconceitos com aquela que seria "droga de hippies". Alguns, de tão exaltados, sugeriam que tivessem tomado sintéticos. Mas não havia nada que comprovasse, além do suor em cascata e os litros de água bebidos.

- A próxima atração já está saindo do hotel - informou o apresentador do evento, em referência ao Brujeria, por volta das 22h.

A chegada da noite não trouxe clima mais lúgubre. Do contrário, até melhorou o clima. O show mais aguardado estava para começar. Bastaram os primeiros acordes para a platéia vir abaixo, ou melhor, iniciar uma roda.

As rodas são um fenômeno social digno de estudo aprofundado. Como explicar um clarão que se forma em meio a multidão, com homens (e também algumas mulheres) dando socos, tapas e rasteiras uns nos outros? E ainda saem felizes da experiência, relegada pelos círculos antropológicos.

Muita porradaria depois, já no bis, apelado aos gritos de "Brujeria!", um incidente: algum incauto rouba o chapéu de cowboy do baixista e ele recusa-se a retomar o show sem o acessório. Muitos apelos, de todos os integrantes da banda, mais staff, mais presidente de fã clube e nada de chapéu. Os portões do Caxiense são cerrados e aqueles que planejavam ir embora mais cedo - já era 1h da manhã - são impedidos. Um princípio de confusão começa, mas logo é resolvido pela palavra. Afinal, briga só na roda porque os banguers são de paz.

Livre do brujeria, ainda pude escutar a música sendo reiniciada, talvez a última. A essa altura já estava descendo a ladeira do inferno ao purgatório, onde, de acordo com Dante Alighieri, "a alma humana se purifica, e se torna digna de elevar-se ao céu". Se estivesse em nossos tempos, o autor de "A Divina Comédia" estenderia, com certeza, a passagem pelo inferno por mais algumas páginas.

Um comentário:

Anônimo disse...

Bernardo:

- Dizer que o Motörhead é alemão é o mesmo que dizer que a Mangueira foi fundada por Argentinos.

- Show do Slayer foi ano passado

- Brujeria não é thrash nem aqui, nem no México.

Corrige isso aí menino. Sou seu irmão mais velho e to mandando. humpf